Entre as brumas da memória
Desde pequeno que a frase "Se não tens nada de jeito para dizer, é melhor estares calado!" me fascina. Recordo com alguma saudade o dia em que a ouvi pela primeira vez. Como poderia eu esquecer aquela tarde em que após uma leitura atenta do Correio da Manhã, perguntei ao Sr. Abade: "Mas afinal o que é a República?". A resposta foi pronta e incisiva. Naquele preciso instante, naquele raro momento de exaltação, aquela exclamação estremeceu todos os frágeis alicerces nos quais eu tinha edificado a minha personalidade. Esqueci a vida. Esqueci o amor. Esqueci a minha pergunta.
Seguiram-se longos meses de recuperação. Meses penosos, onde o tormento daquelas palavras me perseguia incessantemente pelos cantos mais recônditos do meu jardim. Ás vezes batia à porta. Noutras, esvoaçava em frente à lareira. Senti-me a enlouquecer e a desejar uma morte prematura que começasse lentamente pelas unhas dos pés.
Mas num último laivo de amor próprio procurei reagir. Resolvi pedir ajuda no dealer mais próximo mas disseram-me que não vendiam a menores de 10 anos. Tentei a psicóloga do Julio Machado Vaz. Telefonei ao Prof. Vidente Cabrita, à Teresa Guilherme e à Mara, que me direccionaram para a Praça da Alegria. Nada! Tudo em vão. Não conseguia decifrar o alcance daquelas sábias palavras. Escrevi um livro: "Como é que sei se tenho algo de jeito para dizer?". Nele abordei a problemática do saber, do jeito, dos outros e do nada mas ainda assim, o argumento foi inconclusivo.
Finalmente, desesperado, procurei o Sr. Abade. Surpreso com a minha longa angústia, apenas retorquiu: "Espera pelo discurso do Sampaio amanhã".
NG
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